A chegada ao Brasil de tratamento que traz nova esperança contra o Alzheimer 5q3a2d
Ele reacende a busca para superar os desafios de uma doença em expansão 404i2r

Com o envelhecimento da população e o sonho de uma longevidade ativa e saudável, nenhum mistério do cérebro preocupa tanto os cientistas e os cidadãos quanto a principal causa de demência no mundo. Descoberto há mais de 120 anos, o Alzheimer apaga a memória, impõe mudanças comportamentais e leva à perda da autonomia de cerca de 50 milhões de pessoas pelo planeta. É como uma locomotiva sem freios: a partir do momento em que se dá a partida, não há como interromper seu avanço. No caso, a destruição dos neurônios. Mas essa história natural da enfermidade pode mudar com o anúncio de novos medicamentos. Acaba de ser aprovada no Brasil a primeira droga que, ao atuar em um dos trilhos da degeneração neural, consegue efetivamente estabelecer algum breque no trem desgovernado. É esperança a um número crescente de pacientes e famílias que embarcam nessa viagem desafiadora.

Os holofotes se voltaram a um remédio injetável desenvolvido pelo laboratório americano Eli Lilly de nome comercial Kisunla. A comercialização no país deve começar no segundo semestre e o preço ainda será definido. Indicado a pessoas em estágios iniciais do Alzheimer, ele retardou em 35% a progressão do quadro nos estudos. Trata-se de um anticorpo monoclonal que, aplicado em infusões mensais em clínicas especializadas, busca remover as placas pegajosas que se depositam nos neurônios, levando à morte das células nervosas e corrompendo a cognição e outros comandos cerebrais. O fármaco, integrante de uma nova classe que debutou em 2021, após um hiato de quase vinte anos sem novidades, ataca a principal hipótese envolvida na gênese da doença.
Embora seja um grande o dado para reduzir o sofrimento imposto pelo Alzheimer, não significa a cura. Nem o fim dos desafios que cercam o problema. Diversas peças desse quebra-cabeça ainda estão sendo caçadas. Uma das dificuldades é que a condição envolve mais de um mecanismo de colapso cerebral e inicia sua jornada de degradação muito antes de emitir qualquer sinal. “Todas as doenças neurodegenerativas são difíceis de tratar, e o Alzheimer não é exceção”, diz o neurologista Stephen Macfarlane, professor da Universidade Monash, na Austrália. “As placas de amiloide que caracterizam o quadro começam a se depositar cerca de vinte anos antes dos primeiros sintomas de perda de memória, e, nesse momento, muitos neurônios já morreram.”
Se por ora é impossível ressuscitar essas células, ao menos já se vislumbra a chance de frear a avalanche de estragos com remédios e outras estratégias. É uma legítima corrida contra o relógio. Afinal, o Alzheimer corresponde a sete em cada dez casos de demência no mundo e a projeção é que, seguindo o aumento da expectativa de vida global, surjam 10 milhões de diagnósticos novos todos os anos. A questão é que mesmo anticorpos modernos como o Kisunla não desatam todos os nós. O donanemabe, seu nome de batismo técnico, recebeu liberação nos Estados Unidos e no Brasil mediante a confirmação de quadros iniciais comprovados por exames de imagem como o PET scan ou pela análise do liquor do paciente. Não são métodos disponíveis em qualquer centro de saúde. Além disso, a indicação reforça a necessidade de diagnosticar mais precocemente a doença — um desafio gigantesco que demanda urgência no treinamento de médicos e demais profissionais e na conscientização da própria população sobre a doença.
Ainda assim, a farmacêutica responsável pela droga não se vê intimidada por possíveis barreiras. “Depois de 35 anos, estamos aprovando o primeiro medicamento no Brasil com potencial para modificar o curso da doença”, afirma Luiz Andre Magno, diretor médico da Eli Lilly no país. “Estamos falando de um remédio que permitiu que 39% dos pacientes não evoluíssem para a fase seguinte do Alzheimer e perdessem mais funcionalidade.” A empresa investiu 5 bilhões de dólares em pesquisas focadas na demência, que, hoje se sabe, envolve fatores genéticos, comportamentais e ambientais.

Como outros medicamentos, o Kisunla tem eventos adversos, que despertaram bastante atenção do meio médico. Dor de cabeça é o principal efeito colateral, mas a infusão pode causar reações alérgicas graves, inchaço temporário e pequenos sangramentos cerebrais. Daí a necessidade de monitorar os pacientes tratados. Segundo pesquisa publicada no periódico Science, 37% dos indivíduos medicados apresentaram um quadro marcado por edema e pequenas hemorragias na massa cinzenta que pode ser assintomático e, mais raramente, até fatal. Vem daí um detalhe técnico que justifica uma restrição prevista em bula. Pacientes com uma variação genética ligada ao aparecimento do Alzheimer não são candidatos ao tratamento devido à maior predisposição às reações negativas do donanemabe, conforme se observou nos tão relevantes ensaios clínicos que precederam a autorização da terapia.
Os desafios de compreensão do Alzheimer, contudo, vão além das placas amiloide que se acumulam e matam neurônios — e são alvo da nova droga. Por isso há uma série de investigações mundo afora. No Brasil, um grupo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) se debruça sobre outras proteínas cerebrais que serviriam de pista para a doença. Já nos Estados Unidos, cientistas da Universidade Cornell estão mirando um lugar específico da nossa central de comando, o locus coeruleus, conhecido como “ponto azul do cérebro”. Trata-se de uma pequena região ligada à cognição e que pode ser a primeira afetada pela doença. Os estudiosos conseguiram mapear sinais irregulares ali em exames de ressonância magnética, especialmente em mulheres e pessoas negras, mais suscetíveis ao Alzheimer. Conhecer esse detalhe ajudaria a recrutar mais cedo as táticas que desaceleram a demência. “Uma vez que a gente consiga estabelecer a relação entre esse ponto azul, a doença e o envelhecimento saudável, será possível intervir de forma mais precoce, oferecendo e cognitivo e terapias para retardar a progressão”, diz o neurocirurgião João Vitor Lima, especialista pela Universidade Federal de São Paulo.

Nesse contexto, o uso de testes, inclusive genéticos, que indicam a probabilidade de desenvolver a doença tem de ser devidamente orientado, sobretudo entre pessoas que não apresentam sintomas sugestivos de demência. Isso porque podem gerar estresse e até mesmo depressão entre pacientes surpreendidos com uma enfermidade incurável. Uma análise recente mostrou que pessoas submetidas a exames de imagem cerebral que descobriram a presença da proteína ligada à doença ficaram menos ansiosas em relação ao diagnóstico, mas perderam a motivação para manter hábitos saudáveis, o que só piora as condições gerais de saúde e inclusive o prognóstico do Alzheimer.
A boa notícia é que as mudanças nos hábitos representam hoje uma das ferramentas protetoras para minimizar as chances de sofrer com a doença. Em 2024, um time de experts vinculado à revista médica The Lancet elaborou uma lista com catorze fatores de risco modificáveis que devem ser trabalhados em ações individuais e políticas públicas a fim de espantar ou retardar o Alzheimer. Entram nesse rol o controle da pressão e do diabetes, o cuidado com a saúde mental, o combate ao tabagismo e a prática de atividade física. “Se conseguirmos interferir nesses fatores, é possível diminuir em até 45% o risco da doença”, diz o neurologista Paulo Caramelli, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Isso porque uma das teorias cada vez mais aceitas hoje é que o Alzheimer se aproveita de uma conjuntura inflamatória capaz de lesar os neurônios com o ar do tempo. Acatar a lista do The Lancet ajudaria a conter esse rastro de danos.

Enquanto as prescrições de estilo de vida e os novos tratamentos auxiliam a conter o colapso cognitivo, pessoas em estágio mais avançado não podem ficar sem e. E os gestores e profissionais de saúde também trabalham nesse sentido. O governo brasileiro estabeleceu no ano ado uma política pública para acolher pacientes com demência e agora ampliou a indicação de um dos remédios que ajudam a melhorar os sintomas de pessoas com a forma grave do Alzheimer — medida que pode beneficiar 10 000 cidadãos no primeiro ano de oferta. Mas especialistas defendem que é preciso ir além, principalmente nos programas de prevenção. “É mais eficaz e barato dedicar recursos nessa direção do que focar na cura”, afirma Macfarlane. Há longo caminho ainda para entender e deter de vez o Alzheimer — mas ao menos a ciência já esboça uma rota para salvar o cérebro.
Publicado em VEJA de 23 de maio de 2025, edição nº 2945