A movimentação intensa entre grupos opostos de cardeais às vésperas do conclave 3p693
A partir da próxima quarta, 7, serão quatro votações por dia até que o nome do novo papa seja escolhido 3zj24

Foi uma despedida de tirar o fôlego. Na Praça São Pedro, mais de 250 000 pessoas se juntaram a dezenas de chefes de Estado de diversos matizes ideológicos e a uma profusão de religiosos para o funeral do papa Francisco no sábado 26, culminando a semana de homenagens que se seguiu à sua morte um dia depois da Páscoa. Até o sepultamento na Basílica de Santa Maria Maior, no túmulo simples que queria, falar sobre a sucessão papal era praticamente um pecado capital. Mas assim que o último adeus foi proferido, o assunto tomou conta das ruas, dos bate-papos e das entrevistas, inclusive no próprio Vaticano. Boa parte dos 133 cardeais que vão participar da escolha do novo papa já chegou a Roma e não para de confabular em toda oportunidade que surja, impulsionando a formação de inhas que tentam converter quem ainda não tem um candidato.

O proselitismo grassa nas Congregações Gerais, nome das reuniões cardinalícias convocadas dia sim, dia não para decidir sobre questões cotidianas. Na segunda 28, a primeira delas após o fim dos ritos fúnebres reuniu mais de 180 cardeais (imagine o zum-zum-zum dos sussurros paralelos às deliberações e o tom das conversas durante os intervalos). Na próxima quarta, 7, todos os religiosos habilitados se fecharão no Vaticano e, em reclusão total, darão início às votações para o sucessor de Francisco, um processo de meandros sinuosos reproduzido com considerável fidelidade no filme Conclave, que concorreu ao Oscar. São quatro votações por dia até que um nome seja abençoado por dois terços dos cardeais.
Desde o início do século XX que os conclaves duram, em média, três dias até a fumaça branca substituir a escura na chaminé da magnífica Capela Sistina. Caso ultrae uma semana, a votação vai para uma espécie de segundo turno entre os dois favoritos. “Agilidade é importante para transmitir unidade. Mas suspeito que desta vez não será muito rápido”, avalia o historiador polonês Piotr Kosicki, autor do livro Concílio Vaticano II — Atrás da Cortina de Ferro. A diversidade de perfis e a pouca convivência podem arrastar as deliberações. Até 2013, o clube de elite da hierarquia católica era europeu, mas desde então sua composição se tornou heterogênea, com a chegada de africanos, asiáticos e latino-americanos (incluindo oito brasileiros).

Prever o que sairá do conclave é tarefa para videntes ou apostadores — que, aliás, já estão a toda nas bets mundo afora. Mas três correntes já se destacam, cada qual com seus papáveis. Considera-se que Luis Antonio Tagle, 67 anos, das Filipinas, e o italiano Matteo Zuppi, 69, se escolhidos, seriam uma continuação do legado de Francisco, devido à proximidade com grupos marginalizados, embora pequem, veja só, pela pouca idade — a preferência é por gestões não muito prolongadas. Se o pêndulo oscilar para o lado mais conservador, o que é uma grande possibilidade, antecipa-se que ganhem força Robert Sarah, da Guiné, opositor da ideologia de gênero e do casamento gay, e o húngaro Péter Erdó´, rigoroso teólogo que lidera um movimento antissecularização dos rituais. Há ainda uma espécie de “terceira via” no Vaticano, que parece ganhar força nos últimos dias. Ela prega a escolha de alguém conciliador e gregário, como o italiano Pietro Parolin, 70, secretário de Estado e número 2 do Vaticano. “Vivemos um momento de profunda polarização e a Igreja não está imune a essa dinâmica. Debate haverá, mas provavelmente se optará por um caminho menos divisivo”, acredita Yves Chiron, autor do livro A História dos Conclaves.
Espera-se que o novo papa tenha disposição para encarar de frente o mundo em ebulição — que, por sinal, insinuou-se porta adentro da própria Basílica de São Pedro, na inusitada conversa particular, em cenário majestoso, de dois convidados para o funeral do papa, o presidente americano Donald Trump e o ucraniano Volodymyr Zelensky, que aproveitaram a presença simultânea no Vaticano para discutir maneiras de pôr fim ao conflito na Ucrânia. Cada conclave é único, mas Austen Ivereigh, biógrafo de Francisco, comparou o que se avizinha, em um contexto que inclui guerras e desafios à ordem mundial, com as turbulências por ocasião da morte de Pio XI, em 1939. “Na época do totalitarismo que levou à Segunda Guerra, ele defendeu uma sociedade plural contra o poder sufocante do Estado”, lembra. Seu sucessor, Pio XII, era o nome da continuidade até se envolver em controvérsias sobre seu papel ambíguo durante a guerra.

Além do pendor ideológico e da idade, a geografia pode pesar na escolha do novo pontífice. O rebanho encolhe no mundo tradicionalmente católico, inclusive no Brasil, mas está em expansão na África e na Ásia, íveis de uma recompensa. Há quem aposte também no peso de fatores mais subjetivos na escolha. “Depois de Francisco, o carisma influenciará a decisão”, afirma Miles Pattenden, historiador do catolicismo da Universidade de Oxford. Todas essas especulações fazem sentido, mas, muitas vezes, a decisão cabe ao inesperado. “O processo tende a diluir facções preexistentes e permite a ascensão de azarões como o próprio Francisco”, ressalta Michele Dillon, vaticanóloga da Universidade de New Hampshire.
O conclave como se conhece hoje surgiu no século XIII, em resposta a um período de instabilidade na Igreja Católica. Antes, o processo variava conforme os ventos do momento e a escolha era marcada por abusos, com famílias nobres que manipulavam eleições para impor seus candidatos. No caso da morte de Clemente IV, em 1268, a escolha do sucessor se prolongou por quase três anos devido a disputas políticas. Diante do ime, os cidadãos trancaram os cardeais no palácio episcopal a fim de acelerar a decisão. Inspirado por esse episódio, Gregório X oficializou, em 1274, as regras do conclave — do latim cum clave (“com chave”), em referência ao isolamento para evitar pressões externas.

A busca do sucessor de Francisco transcorrerá na surdina, sem qualquer ilusão de transparência — segundo o cardeal Franz König, de Viena, o verdadeiro trabalho ocorre longe dos olhos do público, em conversas informais entre pequenos grupos de religiosos. Francisco certamente estará por trás de qualquer decisão a ser tomada, preserve-se ou não o seu legado. Em seu pontificado, ele reorientou a Igreja em direção às prioridades e preocupações dos fiéis e enfatizou a necessidade de a instituição se voltar para as periferias, princípio que procurou refletir em sua estrutura. “O papa buscou descentralizar a tomada de decisões e promover maior diálogo, consulta e participação”, afirma Sarah Shortall, historiadora especializada em catolicismo da Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos. Conservador ou progressista, o novo papa terá a sombra de Francisco ditando suas ações. Que venha a fumaça branca.
Publicado em VEJA de 2 de maio de 2025, edição nº 2942