Ucrânia faz ataque-surpresa à Rússia. Conseguirá tirar vantagem da situação? 3412w
Os ganhos de curto prazo da ação ucraniana são visíveis e incontestáveis. O futuro, no entanto, traz uma série de incertezas 22162p

Meio escondido pela guerra no Oriente Médio, o esforço da Ucrânia para fazer frente à invasão russa, impressionante por sua garra e eficácia nos meses que se seguiram à agressão, parecia cambaleante neste terceiro ano de conflito. Uma projetada grande ofensiva fracassou, o imprescindível fluxo de ajuda americana ficou ameaçado pelo resultado da corrida pela Casa Branca e, na linha de frente, as tropas recuavam devido ao cansaço e à falta de munição. Eis que, no dia 6 de agosto, 1 000 soldados ucranianos atravessaram a fronteira entre os países quilômetros acima da área de conflito, acompanhados de blindados e drones, e inverteram os papéis ao invadir a região de Kursk. A operação no estilo blitzkrieg pegou o Kremlin de surpresa e superou as expectativas. Algumas unidades avançaram quarenta quilômetros Rússia adentro, levando à declaração de estado de emergência na área e à fuga de mais de 130 000 moradores.
Sete dias após o início da incursão, Oleksandr Syrskyi, comandante do Exército da Ucrânia, afirmou que suas tropas controlavam cerca de 1 000 quilômetros quadrados de território russo. O presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, quando enfim reconheceu o ataque, foi irônico: “A Rússia levou a guerra aos outros e agora ela está voltando para casa”. O ataque a Kursk foi planejado e executado em total segredo. A estratégia lembra a bem-sucedida retomada, em meados de 2022, da província de Kharkiv, quando as forças ucranianas usaram a guerra-relâmpago para avançar a todo vapor por centenas de quilômetros, derrotando um Exército russo subequipado e incapaz de controlar a ampla frente de combate. ados dois anos, o Kremlin voltou a subestimar o inimigo, reforçando a defesa ao longo da faixa de mais de 100 000 quilômetros quadrados de fronteira que controla e deixando o resto desprotegido. “Os generais russos pensam de forma arcaica, ao o que militares de Kiev precisam se reinventar para fazer frente ao adversário mais forte”, diz V.S. Subrahmanian, professor de cibersegurança da Universidade Northwestern. Moscou destacou soldados de elite e disparou drones e mísseis para conter o avanço, mas até a quarta-feira 14 as forças ucranianas marcavam presença em 41 aldeias de Kursk.

Os ganhos de curto prazo da ação ucraniana são visíveis e incontestáveis. Primeiro, o constrangimento do Kremlin, que neste ano reconquistou alguns vilarejos estratégicos que os ucranianos haviam liberado e festejou custosos, mas constantes, avanços na linha de frente. A TV estatal russa mostrou Vladimir Putin desancando oficiais militares, de segurança e do governo local pela falha na defesa. Putin chamou a operação ucraniana de “provocação” e prometeu expulsar os “terroristas”, mas não pode apagar a brecha aberta na promessa de que a guerra não iria atrapalhar a vida cotidiana dos cidadãos russos. Do lado ucraniano, a ação elevou o moral da tropa e da população, em baixa nos últimos meses devido à escassez de vitórias e de soldados no campo de batalha. “As forças ucranianas assumiram o controle da narrativa após meses de reveses”, diz Keith Darden, russólogo da American University, em Washington. “Mas o Kremlin é, de certa forma, imune à realidade.” Enquanto a mídia controlada alardeia a suposta resistência russa, a maior parte da população não tem o ao que acontece no front.
É difícil que a incursão ucraniana produza uma vantagem estratégica duradoura. Pode ser que a Rússia precise deslocar forças da linha de combate para defender Kursk, dando um respiro aos ucranianos exauridos, mas para consolidar sua vantagem o comando em Kiev também enfraquece a outra ponta, pois no mínimo tem de manter o território conquistado. “Kursk pode ser usada como moeda de troca em futuras negociações para o fim da guerra”, aponta Joshua Kroeker, CEO do Reaktion Group, uma consultoria de inteligência — mas isso também depende de uma ocupação de longo prazo.

ado o susto, os aliados da Ucrânia reagiram de forma positiva à invasão reversa. A Casa Branca, que só permite o uso de armamento americano em território russo para ação de defesa, considerou justificável a operação ucraniana. A Alemanha, sempre avessa a qualquer gesto que leve a uma escalada de agressões, reforçou o direito de autodefesa da Ucrânia. Uma reunião convocada pela Rússia no Conselho de Segurança da ONU para denunciar a operação saiu pela culatra. “Não reconheceremos o agressor como vítima”, disse o diplomata esloveno Klemen Ponikvar. Em Kursk, palco da maior batalha de tanques da história, envolvendo 6 000 blindados, que marcou o começo do fim do avanço alemão na Frente Oriental e abriu caminho para a derrota final de Adolf Hitler, a Ucrânia aposta suas fichas em uma vitória duradoura que apresse o fim da guerra.
Publicado em VEJA de 16 de agosto de 2024, edição nº 2906