O apelo da xenofobia: as causas do espantoso crescimento da extrema direita em Portugal 286h4c
Pauta anti-imigração que ecoa pelo mundo 3h5t6d

Foi uma revolução. Não como a dos Cravos, que em abril de 1974 depôs a ditadura de António de Oliveira Salazar, que já durava mais de quarenta anos — mas Portugal viveu no domingo 18 uma outra chacoalhada de repercussões históricas. Nas eleições legislativas convocadas antecipadamente depois da aprovação de uma moção de censura contra o primeiro-ministro, Luís Montenegro, da Aliança Democrática (AD), de centro-direita, deu-se uma sucessão de eventos bombásticos. O partido de Montenegro, como quem renasce das cinzas, venceu o pleito, com 89 das 230 cadeiras, mas em número insuficiente para formar maioria. Em seguida, despontaram o Partido Socialista, com 58 assentos; e o Chega, agremiação de extrema direita, com a mesmíssima quantidade de deputados — estão em aberto ainda outros quatro postos no Parlamento, que aguardam a contabilização dos votos além-mar, mas pouco importa. A notícia impactante, com gosto de vitória, de evidente eco para o futuro, foi a extraordinária ascensão do radicalismo proposto pelo Chega, de escassas preocupações democráticas.
O feito é enorme porque, na prática, acaba com o bipartidarismo que pautou as eleições portuguesas nos últimos cinquenta anos. “Nada será como era antes”, declarou André Ventura, líder do Chega. Durante a campanha, o grupo bateu em uma tecla, com ímpeto especial: a grita contra os imigrantes. Dado o ótimo resultado, é bandeira que parece estar sendo acatada — em nítido incômodo para os 513 000 brasileiros que vivem em Portugal. A AD, de cautela permanente, sempre cuidou para não bulir com os estrangeiros. A bem-sucedida movimentação radical forçou o grupo centrista a piscar, antes mesmo do voto: durante a campanha, Montenegro fez diversas concessões para limitar o número de estrangeiros em solo português. No dia anterior ao início oficial da corrida eleitoral, seu governo anunciou a expulsão de milhares de imigrantes ilegais. Não demorou para que cartazes em busca de apoio da população assem a exibir o rosto do candidato ao lado de uma frase sem meias-palavras: “Regulamos a imigração”.

A postura ganhou aderência diante do encarecimento dos preços dos imóveis e dos aluguéis, incompatíveis com um salário mínimo relativamente baixo, comparado ao de outros países da Europa. “É um discurso facilmente explorável porque responsabiliza os outros por nossos problemas individuais”, diz Bruno Madeira, professor da Universidade do Minho. O Chega aponta seus dedos para indianos, paquistaneses, chineses e ciganos, e evita citar brasileiros em suas peças anti-imigração para não ferir sua base sólida de apoio entre os eleitores com dupla cidadania. Contudo, quem tem o aporte “verde-amarelo” deve sentir os efeitos da nova política. O governo reeleito estuda aumentar o tempo de residência necessário para obtenção da carteira de identidade portuguesa de cinco para dez anos. “Essa possibilidade traz uma insegurança para quem já imaginava que logo conseguiria regularizar tudo”, diz o engenheiro Pedro Souza, nascido em Minas Gerais e que se mudou para Portugal em 2021, depois de a esposa receber uma proposta de trabalho.
Distante do politicamente correto, a bandeira da xenofobia, insista-se, é boa de voto e se espalha mundo afora. Na Itália de Giorgia Meloni, outra prócer de extrema direita, a Câmara acaba de dar o aval final ao decreto-lei que restringe o reconhecimento automático da cidadania a descendentes de italianos que emigraram no ado. A partir de agora, o grau de parentesco por laços sanguíneos se limita a duas gerações, ou seja, será reconhecido apenas para quem tem pais ou avós com cidadania exclusivamente italiana. Nos dois últimos anos, o país da bota concedeu a identidade a 38 000 ítalo-brasileiros. Nem a preocupante curva demográfica da Itália, que no ano ado bateu recorde negativo de natalidade e pode perder 20% da população em menos de cinco décadas, sensibilizou as autoridades.

A cartilha da extrema direita mundial ganha adeptos até entre os países menos afetados pelas questões migratórias. Javier Milei, o presidente da Argentina, que faz de tudo para se mostrar como melhor aluno da corrente política na América do Sul, anunciou recentemente um pacote para restringir a entrada e permanência de estrangeiros no país. Entre as novas regras estão cobranças por serviços públicos de saúde e educação superior, a deportação de imigrantes que cometerem crimes e barreiras para a obtenção de cidadania. O governo afirma que o objetivo é garantir que os recursos públicos sejam destinados exclusivamente aos contribuintes argentinos — só em 2024, segundo dados oficiais, os atendimentos médicos a estrangeiros teriam custado o equivalente a 57 milhões de reais. Segundo o Itamaraty, mais de 90 000 brasileiros vivem no país vizinho, entre eles cerca de 20 000 estudantes em universidades, principalmente de medicina. No pano de fundo, estão as eleições legislativas, nas quais Milei tenta ampliar sua base de apoio. Pelo sucesso que a pauta anti-imigração tem demonstrado no mundo, as chances de ele vencer são boas e parecem confirmar uma ideia inaceitável: a de pôr a culpa das mazelas de um país em quem vem de fora, em busca de melhores condições de vida. No palanque, o que está dando ibope é dizer que o inferno são os outros.
Publicado em VEJA de 23 de maio de 2025, edição nº 2945