PIB robusto, mas crise fiscal: por que a economia do país dá sinais contraditórios
Resultados fortes não eliminam problemas notórios, como o desarranjo fiscal que fez o dólar disparar e levou à queda da bolsa

Em um intervalo de poucos dias, o governo Lula colheu notícias antagônicas na economia. Na terça-feira 3, a divulgação do produto interno bruto (PIB) do terceiro trimestre saiu melhor do que qualquer encomenda do presidente. O crescimento no período chegou aos 4% na comparação com o ano ado e completou o notável feito de quinze trimestres seguidos de alta. Os sinais positivos vieram se somar a uma informação da sexta-feira anterior, 29 de novembro, quando os dados do mercado de trabalho mostraram que a taxa de desemprego caiu a 6,2% em outubro. É o menor nível em mais de uma década, ajudado tanto pela força da economia quanto pelo crescimento rápido dos novos formatos de ocupação que estão vindo com a tecnologia, como os trabalhos ligados aos aplicativos de transporte e entrega.

Nem parece o mesmo país onde, na quinta-feira 28, a bolsa de valores derreteu, os juros futuros dispararam e o dólar ultraou os 6 reais pela primeira vez na história do Real. Isso se deu depois que o governo anunciou um aguardado mas, afinal, frustrante e desastrado pacote de contenção de gastos. “Crescer é sempre uma boa notícia, a má é que o governo não está fazendo a leitura correta disso”, diz o economista-chefe da gestora financeira G5 Partners, Luis Otavio Leal. “A economia está claramente rodando acima de seu potencial, e o governo não se mostra decidido a resolver isso.” Só na bolsa de valores, a saída de capital estrangeiro soma 25 bilhões de reais neste ano, até novembro, e se encaminha para a maior perda de capital desde pelo menos 2016, segundo um levantamento da consultoria Elos Ayta.
São tendências opostas que, aos desavisados, podem causar estranheza. Por que investidores querem sair e não entrar em um país que cresce em ritmo bom? Ou: por que uma economia que está acelerando precisa poupar? A resposta, de acordo com economistas tanto do mercado financeiro quanto da academia consultados por VEJA, a pelo fato de que boa parte do crescimento dos últimos anos foi anabolizada por estímulos saídos dos cofres públicos. Eles ajudam o consumo e até cumprem um papel social, mas estão deixando uma conta bem cara, expressa na dívida pública e nos gastos exorbitantes com juros que crescem com ela. O problema é que esse modelo de crescimento, já tão conhecido do Brasil, financiado com endividamento e inflação, não se sustenta por muito tempo. “Já vimos esse filme antes, e isso se chama voo de galinha”, diz Helio Zylberstajn, professor sênior da faculdade de economia da Universidade de São Paulo. “Há vários sinais de que tanto a economia quanto o mercado de trabalho estão no limite. Sem indicações claras do governo para incentivar os investimentos, isso começa a pressionar os preços.”

O PIB cresceu 0,9% no terceiro trimestre comparado ao segundo e 4% ante o mesmo trimestre do ano ado. O resultado veio acima das expectativas gerais e obrigou, mais uma vez, a uma leva de revisões nas projeções para 2024, para um número cada vez mais perto de 3,5%. Será o quarto ano seguido em que o PIB cresce mais de 3%, sendo que nos dois primeiros o que houve foi reação às perdas na pandemia. Recuperando-se de anos recentes ruins, a indústria de transformação e a chamada formação bruta de capital fixo, que contabiliza os investimentos em maquinário e infraestrutura, chamaram atenção ao crescer 4% e quase 11%, respectivamente. Mais uma vez, contudo, é o consumo que está ditando o ritmo. “O PIB está baseado no emprego forte e nas políticas de renda do governo, que cresceram muito desde 2023”, diz Cláudio Hamilton dos Santos, que conduz os estudos macroeconômicos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. “Isso aumenta o consumo das pessoas, o que puxa os serviços, que são intensivos em mão de obra e puxam, também, o emprego.” Na comparação anual dos dados do terceiro trimestre, o consumo das famílias subiu 5,5%, e os serviços, que são mais de 60% do PIB, cresceram 4%.

O que também chamou atenção foi o desempenho das importações — boas para os países que venderam para nós, mas ruins para o PIB brasileiro, já que são subtraídas da conta final. Na comparação com o terceiro trimestre de 2023, elas avançaram 18%. “É um dos vários alertas de que a economia está batendo no teto de sua capacidade”, diz Margarida Gutierrez, professora do Coppead, a escola de negócios da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Estamos crescendo mais do que somos capazes de produzir, e é isso que as importações complementam.”
O Bolsa Família turbinado e os reajustes maiores para o salário mínimo — e, com eles, das aposentadorias, do abono salarial dos mais pobres e do Benefício de Prestação Continuada — são algumas marcas do retorno de Lula que estão crescendo velozmente desde o ano ado. São transferências que entram no bolso das pessoas e na cadeia do consumo, mas que também puxam a inflação e dilatam o rombo nas contas do governo. Em outubro, a inflação em doze meses chegou a 4,6%, acima, inclusive, do máximo de 4,5% ao ano que deveria respeitar. Já o déficit público, que é quanto o governo gasta a mais do que arrecada, acumula 64 bilhões de reais desde janeiro e retroalimenta a dívida, que cresce ainda mais depressa do que a economia — e, por isso, já subiu de 71% para 78% do PIB de 2023 para cá.
Atacar a parte descontrolada dessas despesas era o objetivo do pacote anunciado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, na semana ada. O projeto promete criar um teto para o reajuste do salário mínimo e enxugar benefícios sociais. Junto, ele adiantou, por motivos políticos, o anúncio de uma reforma ainda confusa no imposto de renda dos mais pobres (isenção para quem ganha por mês até 5 000 reais) e dos mais ricos. As medidas de corte, porém, foram consideradas tímidas e acabaram por piorar a percepção do mercado financeiro — de onde vem o dinheiro que financia a dívida que banca os gastos. “É como um carro numa velocidade muito alta e que tem risco de capotar”, diz Armando Castelar, pesquisador da Fundação Getulio Vargas e ex-chefe do Departamento Econômico do BNDES. “O investidor vai querer ser muito bem remunerado para ficar nesse carro.”
A inflação subindo, o mais inexorável sinal de uma economia que está demandando mais do que pode oferecer, já vinha obrigando o Banco Central a voltar a elevar a Selic, a taxa básica de juros do país. A crise nos mercados, que incitou o dólar, coloca um peso adicional sobre os preços e redobra a necessidade de juros mais altos, deixando uma missão especialmente difícil no colo de Gabriel Galípolo, o pupilo de Lula que assume a presidência do BC em janeiro. Até poucas semanas atrás, as expectativas dos economistas eram de que a Selic, hoje em 11,25% ao ano, deveria subir para perto de 13% nos próximos meses. Após o pacote-bomba, há quem diga que a taxa terá de chegar a 14% ou até mais.
Como os juros altos têm efeito recessivo, o resultado é uma desaceleração já encomendada para o ano que vem. Nas estimativas preliminares dos economistas a expansão do PIB vai arrefecer para os 2%, enquanto o desemprego deve se acomodar perto dos 7%. “De algum jeito esse ajuste vem”, diz José Márcio Camargo, economista-chefe do Banco Genial. “Se não for pelos juros, a correção virá pela inflação, o que é muito pior. Ela vai diminuindo a renda real dos trabalhadores e também desacelera a economia”. Seria um fenômeno parecido, lembra Camargo, com o que ocorreu na virada do superaquecimento da economia até 2013 para a profunda recessão que veio em 2015 e 2016, uma agem traumática e ainda suficientemente fresca na memória de todos os analistas.

A receita estrutural para que o país possa crescer a taxas mais altas, elevar salários e ter juros baixos ao mesmo tempo não tem segredo. Antes de tudo, as contas públicas têm de ser balanceadas. Além disso, é preciso “melhorar o ambiente de negócios, destravar os investimentos e ganhar produtividade”, diz Castelar, da FGV. Os especialistas reconhecem que muito foi feito nesse sentido nos últimos anos, com reformas como a trabalhista, a tributária e vários marcos setoriais. É o que explica o país já estar sendo capaz de crescer mais que o pífio 1% ao ano em que ficou preso na década ada. Mas, para manter o ritmo de 3% ou mais, sem que o crescimento leve a desequilíbrios no futuro, há muito trabalho a ser feito.
Publicado em VEJA de 6 de dezembro de 2024, edição nº 2922