O que explica o sucesso de ‘Dona de Mim’ diante do fiasco de ‘Vale Tudo’ v5gm
Em meio à crise de audiência, a Globo vê uma virada que aponta para mudanças no consumo de TV e no paladar do espectador 132g1p

Com o sucesso de Pantanal, em 2022, o diretor-geral da Globo, Amauri Soares, e o diretor de teledramaturgia, José Luiz Villamarim, se reuniram para discutir quais novelas icônicas poderiam ser refeitas. Um clássico da história da TV, Vale Tudo, de 1988, logo entrou na fila para ganhar uma versão atualizada, feita com pompa e circunstância, sob uma campanha de divulgação intensa, atrelada ao aniversário de sessenta anos da emissora. Não tinha erro. Vale Tudo combina personagens notáveis, como a inesquecível vilã Odete Roitman, uma trama afiada sobre ganância e corrupção e um elenco reluzente, com Taís Araujo, Cauã Reymond, Debora Bloch, entre outros. A expectativa, porém, não bateu com a realidade.

Desde sua estreia, no fim de março, o folhetim da faixa das 9 caiu em audiência e estagnou na média preocupante de 21 pontos do ibope em São Paulo — para comparação, há três anos, Pantanal fechou sua trajetória com 30 pontos de média. Em seu pior dia, Vale Tudo ficou abaixo de todos os outros programas noturnos da Globo, da novela das 6, Garota do Momento, até o Jornal Nacional. Os dedos apontados sugerem inúmeras razões para o fiasco do folhetim assinado por Manuela Dias. Entre elas, o suposto desinteresse do brasileiro pela TV aberta em tempos de streaming. Amauri Soares afirmou diversas vezes que as métricas atuais não estão em harmonia com os novos meios de assistir a uma novela on-line. O clima nos bastidores, contudo, sugere que os pontinhos do ibope — cada um deles representando quase 200 000 indivíduos — importam, sim. Tanto que mudanças estão sendo feitas na trama para reverter o quadro.
A força da TV aberta no país ainda é incontestável. Segundo relatório de abril deste ano da Kantar Ibope Media, 59,3% da audiência dos televisores brasileiros é proveniente dos canais abertos — 32,5% representam vídeos on-line, como YouTube e Netflix, e apenas 8,2% são da TV paga. As opções do que ver na televisão aumentaram, assim como a autonomia do espectador. Por isso, enquanto Vale Tudo decepciona, é notável o feito de Dona de Mim, atual novela das 7 da Globo, que foi promovida de prima pobre à prima rica da emissora. Recentemente, o folhetim estrelado pela carismática e ainda pouco conhecida Clara Moneke bateu 23,2 pontos no ibope. O número mantém em ótimo patamar a audiência dessa faixa, que teve seu último recorde em abril, na última semana de Volta por Cima (24,2). Criação de Rosane Svartman, Dona de Mim segue suas outras obras, Totalmente Demais (2015) e Vai na Fé (2023), novelas que mostram como a autora sabe levar para a tela o brasileiro como ele é — e, principalmente, como ele gosta de se ver.

Outro fator trabalha em favor de Rosane. Nos últimos anos, nota-se uma mudança de comportamento do público indicando uma inversão de valores: a faixa das 7 caminha para se tornar o ponto alto do horário nobre. Esse lugar cobiçado costumava ser da novela das 9, que, não faz muito tempo, em 2019, alcançava impressionantes 45 pontos. As razões para essa virada ainda estão no campo da especulação, mas am pela rotina do público e pela vasta possibilidade de ver conteúdos quando, onde e por quanto tempo ele quiser. “Hoje as pessoas estão assistindo a novelas pelo Instagram e pelo TikTok no lugar da TV”, afirma Mauro Alencar, doutor em teledramaturgia pela USP, sobre os famigerados cortes de cena que resumem os capítulos para os mais apressados nas redes. Nesse outro fronte, Dona de Mim também leva a melhor: a novela soma até aqui 107 000 publicações no TikTok, ante 32 000 de Vale Tudo.

No frigir dos ovos, audiência atrai publicidade, o que equivale a lucro — e as novelas hoje precisam dar resultado tanto na TV quanto na internet. “O anúncio isolado na programação já não sustenta uma campanha. Ele precisa estar integrado com redes sociais, ativações, experiências”, explica Tatianna Oliva, CEO da Cross Networking, empresa de parcerias entre marcas. A presença virtual da personagem Maria de Fátima (Bella Campos), de Vale Tudo, é uma resposta a essa demanda: o publi a pela novela e aterrissa nos perfis dela nas redes. A vilã que ama dinheiro e odeia pobre, porém, pode perder essa boquinha: a queda de audiência tende a afetar as cotas publicitárias, que na faixa das 9 custam o dobro do valor pago no horário das 7.

Para não perder esse jogo, Vale Tudo deve rever seus conceitos. O maniqueísmo do vilão malvado e da mocinha boba podia funcionar em 1988, mas hoje nem tanto: se Raquel, papel de Taís Araujo, irrita com excesso de ingenuidade, Leona, vivida por Clara, é uma jovem ácida, que mete os pés pelas mãos, se sacrifica pela família, mas não deixa de olhar para si mesma. Na trama, ela aplaca a dor de uma perda gestacional ao se tornar babá de uma adorável garotinha adotada por uma família rica. O trunfo de Dona de Mim é acertar no básico. Os personagens possuem camadas, como o mocinho Marlon (Humberto Morais), um PM evangélico que não cai em pieguismos ou preconceitos. Seu roteiro ágil, sem didatismos, cômico e emotivo na medida, não subestima a inteligência do espectador. Pobre Odete Roitman: ela tem muito a aprender com a rica Dona de Mim.
Publicado em VEJA de 6 de junho de 2025, edição nº 2947