Digital Completo: Assine a partir de R$ 9,90
Imagem Blog

Fernando Schüler 294t4w

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO

Encruzilhada brasileira 68533t

A ambivalência nos salva: há o país arcaico, mas também o moderno 35s51

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 10 Maio 2025, 08h00

“Quantos assessores têm cada deputado?”, perguntei. A manhã era fria em Estocolmo, e fazia minha visita ao Parlamento sueco junto com um pequeno grupo. “Menos de um”, me respondeu a jovem deputada que nos acompanhava. Ela explicou que não havia assessores individuais, que cada partido tinha um grupo de apoio e que a coisa toda funcionava bastante bem. E retrucou: “Por quê? No Brasil não é assim?”. “Deixa pra lá, deputada, vamos em frente”, respondi, com bom humor. Na hora, me lembrei dos nossos 25 assessores por deputado. Ou mais de 100, para alguns senadores. Tudo por lá foi me chamando a atenção. Os apartamentos dos deputados, que visitei, com coisa de 40 metros quadrados. “Só para os dias de trabalho”, me explicaram. Observei as discussões sobre o direito do parlamentar a um vale de transporte público. A bizarrice que seria sugerir que um deputado tivesse seu “carro oficial”. Saí de lá pensativo. Aquele é um país rico, mas são eles os obcecados com a moralidade pública. Seria algo cultural? Seriam as tais “instituições inclusivas” pautadas por regras claras de mercado, isonomia, atenção ao interesse público, como sugeriu o Nobel de Economia Daron Acemoglu? Não sei. Minha preocupação não era a Suécia, mas o Brasil. Era difícil imaginar que alguém preferisse nosso perfil de “país pobre com um Estado esbanjador”.

Me lembrava disso enquanto lia sobre as fraudes do INSS. Aquele ministério imenso, recheado de políticos, sem função aparente. O “careca do INSS” que fazia lobby nos corredores de Brasília. As justificativas algo nonsense do ministro, perguntando “o que mais eu podia fazer?”. De tudo, me pegou uma frase de um aposentado, melancólico: “Como eu iria desconfiar do INSS, um órgão federal?”. A repórter havia perguntado se ele não tinha achado estranhos os descontos. Talvez agora ele aprenda a não confiar. Tudo que não seria desejável em uma democracia. Desconfio que vá ficar tudo por isso mesmo. Seria um caso óbvio para uma I, mas é duvidoso que aconteça. Me lembro de 2021, quando o STF mandou instalar aquela I da pandemia porque era um “direito da minoria”. O país mudou, somos a pátria dos dois pesos e duas medidas, e agora não vai rolar. Se estiver enganado, me retrato. O governo tira o ministro e põe o braço direito do próprio ministro. E tudo leva a crer que a conta dos ressarcimentos vai parar no bolso do contribuinte, mais uma vez. E no fundo é por isso que me lembrei da Suécia. Por uma frase dita por um amigo professor de lá: “Se você abrir uma janela, a coisa toda se perde”. Ele via o tema da moralidade na linha da “janela quebrada”. Se você permite certos privilégios para um setor, os outros vão achar que têm o mesmo direito; se você “anular” uma condenação por corrupção, tudo servirá como uma licença. Se você aceitar um pequeno truque, como a decisão recente de que os sindicatos podem cobrar uma contribuição de todos os trabalhadores e que cabe a cada um dizer que não deseja ser cobrado (sabe-se lá como), está dando a senha para os truques seguintes.

O que meu colega quis dizer é que a moralidade pública segue um padrão. Enquanto na Suécia só o primeiro-ministro tem direito a um carro oficial permanente, no Brasil praticamente todos dispõem de um. Isso além das mais de cinquenta autoridades com direito a jatinho free da FAB. Descobrimos, ainda, que oito governadores emplacaram as esposas como conselheiras nos tribunais de contas. Em regra, de estados pobres como Alagoas, Ceará, Bahia, Amapá e Piauí; em outra, lemos sobre os mais de 40 000 funcionários ganhando acima do teto do setor público. Lemos sobre a PEC da Anistia, autoconcedida pelos próprios políticos para multas partidárias. E por aí vamos.

“A ambivalência nos salva: há o país arcaico, mas também o moderno”

O padrão é conhecido: a tradição patrimonialista. Ninguém desnudou melhor esse conceito do que Raymundo Faoro em Os Donos do Poder. A tese de Faoro é conhecida, navega desde nossas raízes ibéricas, da confusão entre o rei e o reino, a mixórdia do Estado intrometido nos negócios privados, a lógica do favor, o mando do estamento burocrático. Na última década, na esteira dos escândalos de corrupção — mensalão, petrolão, Lava-Jato — uma parte da esquerda acadêmica ensaiou uma mudança de enredo: a recusa do argumento em torno do patrimonialismo. A ideia de que denunciar a captura do Estado, o favorecimento dos “campeões nacionais” e a corrupção seria um tipo de ideologia das “elites”. Como me observou um colega, irônico, um argumento na linha “já que apanharam nosso partido com a mão na cumbuca, precisamos com urgência de uma nova sociologia”.

Continua após a publicidade

O fato é que o padrão patrimonialista está mais vivo do que nunca. O que não deixa de ser melancólico, 37 anos depois da Constituição Cidadã. Faoro chamou atenção para o “estamento”. O alto funcionário, o operador político, a comunidade no entorno do poder. O que se vê hoje é o patrimonialismo difuso na sociedade. O ministro Luís Roberto Barroso, do STF, em um artigo recente sobre Faoro, chamou atenção sobre isso. O vício patrimonial não se concentraria em um espaço específico de poder, mas em “múltiplas dimensões da vida” do país. “No empresariado, na classe política, na burocracia — inclusive judicial —, no setor militar e mesmo em sindicatos.” Daí o sentido de um “padrão”. Ele pode vir do uso irresponsável do Orçamento para conceder benefícios sem lastro fiscal aos “de baixo”. Pode vir quando um ministro concede, sabe-se lá com que direito, aposentadoria aos 52 anos para mulheres policiais. Ou quem sabe das dezenas de regimes especiais dados na reforma tributária.

O que nos salva é a ambivalência. Ao lado do país atrasado, distribuindo nacos do Orçamento na forma das emendas parlamentares, dando aos partidos o maior fundo eleitoral do planeta, no país dos penduricalhos — essa palavra tão brasileira —, vai se desenhando um Brasil surpreendentemente moderno. País que soube criar um Banco Central independente; que soube fazer reformas difíceis, como a trabalhista, tirando um poder patrimonial dos sindicatos. Ou que fez um quase milagre, como a Lei das Estatais, afastando a gestão de empresas do governo do varejo político. E por fim o marco do saneamento, injetando competição de mercado em uma área vital. A lista é grande, frequentemente desprezada. Ela mostra o Brasil diante de uma encruzilhada. De um lado, o arcaico. Este que apareceu na sua pior feição, traindo a confiança daquele velho senhor que acreditava no INSS. De outro, o traço moderno. Regra de mercado, isonomia, meritocracia e responsabilidade fiscal. Parecemos andar em zigue-zague diante da encruzilhada. Nos anos recentes, ensaiamos uma marcha a ré. Com a vantagem de que, com alguma sorte, tudo isso possa acabar nos servindo de lição.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Continua após a publicidade

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 9 de maio de 2025, edição nº 2943

Publicidade

Matéria exclusiva para s. Faça seu

Este usuário não possui direito de o neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única digital

Digital Completo 4b3v3b

o ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*
Apenas 9,90/mês*
OFERTA RELÂMPAGO

Revista em Casa + Digital Completo 1f5w5z

Receba 4 revistas de Veja no mês, além de todos os benefícios do plano Digital Completo (cada revista sai a partir de R$ 7,48)
A partir de 29,90/mês

*o ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$118,80, equivalente a R$ 9,90/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.